Cubo mágico social: tempos de crise e pós-crise

Cristina PanellaNewsletters Deixe um Comentário

Tempos difíceis, mas sobretudo novos os que vivemos.

A Sociologia, disciplina que analisa fundamentalmente as mudanças sociais e exige o distanciamento de nossas opiniões e crenças para a análise, pode contribuir com o entendimento e principalmente com o debate do nosso tempo.

Marcada por uma espécie de naturalização da época em que vivemos, indivíduos têm a sensação de que tudo sempre foi como hoje. Parte dessa tendência aparece, de forma clara, em nossa memória individual – cada vez mais fragmentada e cada vez mais composta por momentos acontecidos recentemente -, cujo suporte, em áudio, vídeo ou texto, está registrado hoje, de forma efêmera, nas redes sociais. Mas nossa sociedade e civilização vai bastante além de algumas stories – aqueles vídeos ou fotos que só podem ser visualizados por um período curto, e saem do ar – e por conseguinte da memória registrada – em 24 horas.

Mas como se organizam e reorganizam as comunidades e sociedades, sobretudo em época de crise? Um objeto conhecido de todos, o cubo mágico, com que muitos tiveram a oportunidade de se desafiar apresenta-se com uma metáfora elucidativa.
Recuperando um as características das formações sociais, indivíduos e organizações se rearranjam no tempo histórico como consequência de forças que por vezes se opõem e, em outras, se alinham, com o intuito de alcançar a estabilidade – da mesma forma que o cubo em nossas mãos, Ainda de forma metafórica, o cubo -representando as sociedades – apresenta-se em seu estado estável e final com todas as suas cores ordenadas, cada uma em uma face.

Quando outra pessoa, outras mãos, outras visões, tomam o cubo, giram uma das bordas em primeiro lugar, imaginando que dessa forma, controlarão o cubo fazendo com que o objeto multicolorido retorne rapidamente ao estado inicial, com as faces uniformes. Porém, é nesse momento, o jogador descobre que o estado desejado só será alcançado após múltiplos movimentos que organizarão e reorganizarão cores e linhas por um longo tempo.

Então vamos lá: o homem é um animal social
Em época de pandemia e medo exacerbado, quando predomina o individualismo, é sempre bom recordar que o homem é um animal social: sua vida só se realiza em sociedade.

É no contato e contraponto das comunidades que floresce a cultura, que se exprimem as normas, os valores, os artefatos e as crenças grupais. A sociedade global poderia então ter se desenvolvido, na maior parte das vezes, pela cooperação harmônica. Porém desde os tempos antigos, as sociedades se organizaram em estados-nação. Ainda hoje é percepção comum que nossa nacionalidade é, em grande parte, definida pelas fronteiras do país em que vivemos, como se essa pudesse proteger-nos de qualquer coisa que venha de fora. Outro elemento: a todos aqueles que vivem dentro dos limites dessas fronteiras, chamamos de povo. No entanto, assim que fazemos isso, assumimos que tudo o que destoe da ordem instaurada será um inimigo do povo – abstração que esteve na base da ideologia da segurança nacional e, obviamente da xenofobia.

A percepção do “global e, a criação do conceito “glocal”
Curiosamente, foram os ambientalistas que bem mais recentemente – na Alemanha de 1950 (pós-guerra) – lançaram a ideia de que o mundo era globalizado ao demonstrar que o meio ambiente não tinha barreiras e, portanto, nunca respeitaria fronteiras.
Nos anos seguintes, o entendimento da importância e força de regiões e comunidades com fortes tradições regionais (como o País Basco ou a Catalunha, por exemplo) fez com que fosse ultrapassada a falsa oposição entre Global e Local, dando origem ao neologismo glocal. Como se sobre uma partitura musical global fossem desenhados notas, tempos e compassos com especificidades locais

Ameaças: compreensão ou interpretação?
Como reagem os homens às ameaças? Poderíamos pensar que, em pleno século XXI, bastaria informar com precisão o que está acontecendo para que as sociedades obedecessem às orientações, atravessando o período crítico calmamente. Porém a Sociologia postula que a realidade é construída socialmente, ou seja, a realidade é produto da interação entre indivíduos, grupos e características das sociedades. Por isso a importância da comunicação (e não somente da informação). Dois exemplos da dificuldade de comunicação:
a) Governantes e técnicos deixam de considerar que a comunicação é um processo de co-construção do sentido, ou seja: a compreensão de qualquer conceito ou norma articula-se a partir de três bases: aquela oferecida pelo locutor, dados sociais disponíveis e, principalmente, pelo nível social e cognitivo do receptor que não somente ouve, mas interpreta o que ouve. O resultado nem sempre é igual ao que o locutor desejava.
Não me parece simples comunicar ao público em geral o “achatamento da curva” (será que indicar em um desenho o achatamento é compreensível para as camadas mais populares? Como transformar o desenho em uma explicação, um discurso racional, passível de ser apreendido, co-construído e compreendido?

b) No nível social, as pessoas têm dificuldade em entender certos aparentes paradoxos. Por exemplo: temos certeza de estarmos numa época moderna, mas não oferecemos, nem de longe, as necessidades sanitárias básicas da população. Temos um sistema de saúde do qual devemos nos orgulhar, mas insuficiente para conter a ameaça, …

A ameaça como oportunidade

Estamos em uma transição. Sabemos que, em nenhum momento, a humanidade viveu por muito tempo sem um propósito ou sem instituições nas quais se apoiar e pelas quais se organizar. No mundo pós Coronavínus 19 algumas certezas poderão ser desconstruídas: Será que:
• O Ministério da Saúde (e por consequência aspectos sanitários) terá mais autoridade no país do que o líder do Executivo, modificando a prioridade dos investimentos públicos?
• Tenderemos a uma governança global, transnacional, com a OMS ocupando o espaço da ONU em um mundo fragilizado por ameaças globais?
• A arquitetura das residências, os modelos habitacionais, serão modificados, prevendo espaços para épocas de isolamento social? As favelas serão mantidas na arquitetura atual ou deverão obedecer à um plano público?
• Idosos serão estigmatizados e alocados em unidades de habitação próprias para eles, com autorização para ver os netos semanalmente com uso de uma barreira de vidro?
• Os jovens, por sua vez, serão hipervalorizados e tratados de maneira especial, e considerados como os reprodutores férteis e futuros garantidores da espécie?

Individualmente, pessoas têm medos de diversos tipos. E angústias. E depressões. Muitas vezes fruto do isolamento forçado, não por opção. Socialmente, será que esses sentimentos todos justificarão atos xenofóbicos, contra estrangeiros?
Esses tempos demonstram que entre o instinto que nos guia em tempos de ameaça e a civilização é necessário espaço para a moral.

Saúde X Economia
Em entrevista à CNN, Bill Gates afirmou que “lockdown é remédio duro, mas inevitável”…E chama a atenção para os primeiros efeitos da crise sobre o comportamento – “Mesmo se você falasse para as pessoas voltarem a consumir, comprar casas, carros e ir a restaurantes, eu duvido que elas vão querer fazer isso. As pessoas querem proteger os mais velhos, seus pais….”
Isso do lado do consumidor. Do lado do fornecedor ou prestador de serviço, o maior impacto – socioeconomicamente falando – recairá sobre os empregados das pequenas empresas do setor terciário (prestadores de serviço pessoais, profissionais do entretenimento, dos restaurantes, agências de viagem, hotéis, transporte, varejo em geral). Não será possível evitar a demissão em massa fruto da quebra generalizada dos negócios. Sem o fluxo entre os setores, o tecido econômico e social se dissolverá

Temos que encontrar a forma de ultrapassar a simples alternativa SAÚDE OU ECONOMIA. O mundo não é binário. Como disse Tom Frieden, ex-diretor do CDC, o órgão máximo de controle e prevenção de doenças dos EUA, no Washington Post:
“A escolha não é entre saúde e economia, mas otimizar a resposta da saúde pública para salvar vidas e minimizar os danos econômicos
Afinal, homens criam economias, mas economias não criam homens.

Afinal, como remontaremos nosso Cubo Mágico?
Quem seremos amanhã? Que cidades queremos, que tipo de trabalho e que papéis sociais queremos exercer?
• Talvez mudemos nosso comportamento nas redes sociais – buscando mais a conexão, utilizando-as mais como meio e não como espelho, quando busca-se o isolamento e admiração;
• O desarranjo das cadeias produtivas pode abrir espaço para pensarmos em novos modos produtivos que tenham como um dos princípios a solidariedade e o reconhecimento da alteridade e não somente da lei de mercado.

Por fim, embora o raciocínio que apresentamos seja, também ele, fruto de nosso tempo, é bom lembrar que mesmo que Marx não tenha vivido em um momento similar ao nosso, refutava o conceito de que o homem é dominado por seus desejos e ideias. Para Marx, são as relações sociais que moldam o ser humano. E é a história que constrói o homem. Vamos tirar partido.

Gostou? Compartilhe!

Breve apresentação da Cristina Panella Planejamento e Pesquisa. Vamos tomar um café para conversarmos sobre suas necessidades?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *