Caneta, Gerações e Memória

Cristina PanellaNewsletters Deixe um Comentário

Levar em conta a dimensão cognitiva em sociologia, frequentemente desvalorizada, torna rica a análise da coprodução do sentido social

Preparando-me para uma viagem, fui à papelaria do bairro comprar cartuchos para uma caneta tinteiro. Vi na vitrine outra, simpática, e pedi à mocinha no balcão se poderia vê-la, de perto, ao vivo e em cores. De forma absolutamente singela perguntei: “posso ver a caneta tinteiro?” A mocinha me olhou, perplexa!
Sei que por vezes peco pela dicção, mas com tantos “c” e “t” imagino que qualquer um pudesse entender minha simples demanda. Repeti. Novamente, um olhar perplexo. Achei por bem aventar a hipótese do desconhecimento total do objeto, dizendo “você não sabe o que é uma caneta tinteiro….”
Nesse ínterim o dono da papelaria que acredito estar nos seus trinta e tantos anos, riu e decidiu me atender. Abrimos a caneta, colocamos o cartucho sob os olhares ainda perplexos da mocinha do balcão. De repente, fez-se a mágica – o cartucho, um simples tubinho que deslizava a tinta para uma pena…. Foi quando ela gritou, aliviada: “Ah! é a caneta do filme da Barbie!!!”
Juro que, por pura curiosidade sociológica, vejo muitos filmes infantis, mas… Então, querendo maior precisão, perguntei se ela não estaria confundindo com as penas para escrever, presentes nos filmes do Harry Potter. Ela, resoluta, respondeu: “não, não é a mesma coisa. Em todos os filmes da Barbie assinam com uma caneta como essa”.
Acho que quase me tele transportei para um museu de pessoas vivas quando disse a ela que no fundamental (antigo primário, comme il fallait le dire) era proibido usar esferográfica. Só as canetas tinteiro eram permitidas – sem tubinho ou cartucho que só apareceram em 1967, acredito, além do lápis bicolor azul e vermelho para sublinhar.

Choque de gerações?
Explicação por demais simplista…. Inclusive porque trata-se de um objeto ainda presente nas prateleiras e em uso por alguns indivíduos.
Esse exemplo abre a reflexão para diferentes aspectos: gerações, memória, reconstrução histórica e muitos outros.
Antes de mais nada, vamos deixar claro que recorrer às variáveis de definição clássica da sociologia como «sexo», «idade», « profissão», «renda» e «nível de escolaridade» para compreender e analisar a temporalidade e a memória, só tem pertinência sociológica quando não são consideradas como substâncias ou propriedades a priori, mas substituídas e (re)interpretadas no e em função do contexto preciso analisado. Sob essa ótica, o recurso às representações sociais como variável de definição das sociedades revela-se rico e permite qualificar melhor a memória individual como um espaço misto, ponto de interseção entre as esferas do privado (representadas pelas características econômicas e de consumo) e do social: o espaço dos discursos e da produção e circulação simbólica.
Nessa perspectiva, a análise da memória individual e geracional como um processo de co-construção de significados, conceito definido por mim ainda em 1991, permite analisar a atividade cognitiva de todo indivíduo e ilustrar o papel e as funções dos objetos simbólicos.
Se a tarefa do sociólogo não é descobrir «o» sentido social, ele deve poder responder à questão no fundamento desta disciplina: em que medida os fatores que intervêm na produção do sentido social são construídos? E, portanto, em que medida eles são produtos sociais?
Nesse sentido, levar em conta a dimensão cognitiva em sociologia, na maior parte das vezes atribuída a outras disciplinas e frequentemente desvalorizada na nossa, demonstra ser extremamente rica para a análise da coprodução do sentido social, permitindo ressaltar outras formas da diferenciação social e, assim, sair do enclausuramento das categorias e teorias nem um pouco substanciais.
A mobilização dessas duas formas de conhecimento – técnica (ou econômica) e sociocultural – é subjacente à construção de significados pelos públicos e efetua-se por meio de uma série de operações sobre marcas materiais. Algumas dessas operações podem estar inscritas nos objetos de leitura, caso, por exemplo, do uso de uma imagem em preto e branco para caracterizar a representação social «de luxo» a um produto ou então a adoção de uma linguagem antenada, em um anúncio dirigido a adolescentes. Outros conhecimentos requerem percepções externas à materialidade e, portanto, o significado construído é uma função das referências socioculturais mobilizadas pelos indivíduos para a leitura dos conjunto texto-imagem.
Para ilustrar esse processo geral de co-construção do sentido em minha tese de doutorado, destaquei, num primeiro momento os mecanismos de leitura utilizados pelos indivíduos em escolhas de anúncios publicitários, analisando, em seguida as operações cognitivas presentes em cada mecanismo.
O duplo componente – cognitivo e social – da atividade de leitura (e cognição) está fundamentado nas diversas noções apreendidas pelos estudos realizados sobre a lógica natural. A partir da definição de Jean-Blaise Grize (1990: 65), esse tipo de análise dirige a atenção aos componentes sociais e cognitivos que permeiam as operações lógicas do discurso: «a lógica natural pode ser definida como o estudo das operações lógico-discursivas que permitem construir e reconstruir uma esquematização. O duplo adjetivo existe para salientar o fato de que se está diante de operações do pensamento, mas, apenas na medida em que elas se expressam através das atividades discursivas».
Ainda de acordo com Grize (1990), o privilégio concedido às atividades discursivas permite caracterizar a lógica natural segundo dois aspectos principais: inicialmente, é uma lógica dos indivíduos diante de uma situação de comunicação que transcorre em um contexto social determinado e que deverá ser levado em consideração na análise. Em seguida, a lógica natural é também uma lógica dos objetos, pois ela serve para construir os objetos em consenso com os interlocutores, objetos que são sempre dotados de conteúdos específicos. É nesse sentido que a lógica natural permite analisar o papel desempenhado, na atividade discursiva, pelos conteúdos e pelo discurso no sentido vernacular do termo.
A lógica natural é preciosa para a análise das diferentes operações realizadas pelos indivíduos nas leituras que eles fazem do cotidiano.
No caso do exemplo que abriu esse artigo, permite entender como a referência ao objeto caneta tinteiro perdeu sua historicidade original, substituída por conteúdos aprendidos na infância da mocinha do caixa: os filmes da Barbie.
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Algumas referências bibliográficas:

ANGENOT, Marc. «Le discours social: problématique d’ensemble», in: Le discours social et ses usages. Québec: Cahiers de recherche sociologique, vol. 2 nº 1, avril, 1984, pp. 20-44.
ANGENOT, Marc. Critiques de la raison sémiotique: fragments avec Pin up. Québec: Les Presses Universitaires de Montréal, 1985.
GRIZE, Jean-Blaise. Logique et langage. Paris: Ophrys, 1990.
HOGGART, Richard. La culture du Pauvre. Paris: Minuit, 1970.
RICŒUR, Paul. «Le temps raconté», in: Revue de métaphysique et de morale nº 4. Paris: CNRS/ Centre National de Lettres/ Armand Collin, octobre, décembre 1984, pp. 436-452.

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